A alquimia do sopro
Isabelle Câmara
Revista Continente Multicultural
 
 

No verão de 1949, enquanto muitos brasileiros agitavam ao som das músicas "Chiquita Bacana", de Emilinha Borba, e "General da Banda", com Blecaute, hits do carnaval daquele ano, um pequeno grupo de moças e rapazes da Tijuca, que certamente tinham horror a samba e odiavam carnaval, estavam reformando, pintando e decorando uma espécie de porão de um sobrado no bairro, o que viria a ser o Sinatra-Farney Fan Club, primeiro fã-clube do Brasil e que se tornou ponto de encontro de músicos, artistas, poetas intelectuais da época, abringando fascínios, sonhos, brigas, debates e música, muita música.

Bem, o Sinatra-Farney estava longe de ser como o Minton’s, em Nova York, onde os futuros craques do bepop se revelaram. Mas foi lá que o país começou a ver a gênese da bossa-nova. Foi lá que talentos imberbes como o de João Donato e Johnny Alf começaram a ser burilados.

Foi lá também que um jovem clarinetista e aprendiz de alfaiate, filho de um mestre de banda e irmão de outros músicos, natural de São José Do Rio Preto (SP), passou pelo primeiro teste de sua vida. Com os ouvidos afinados palo que ouviam Benny Goodman fazer com a clarineta, as jovens Joca, Didi e Teresa Queiroz, donas do clube, não se deixaram impressionar pelos sopros de Paulo Moura. Mas ele entrou, raspando, no clube. Dois anos depois, fez mais um teste. Desta vez para a Escola Nacional de Música. Foi aprovado direto para o quinto ano (será que os ouvidos delas eram realmente afinados?). Logo depois foi contratado pela Orquestra do Theatro Municipal e tornou-se o primeiro clarinetista negro e solista de uma sinfônica no Brasil.

Paulo Moura é ícone. Em julho passado, no I Festival Música na Ibiapaba, evento que reuniu 600 estudantes e mais de 20 professores de música de todo país, além de vários músicos, na cidade serrana de Viçosa do Ceará, a 340Km de Fortaleza e a 717m de altitude, ele foi aplaudido e cultuado pelos novos, por sua obra sólida, gigantesca e vertiginosa. Paulo Moura também é nome de festival – Festival Paulo Moura de Música Instrumental, que acontece desde 1997, sob sua direção, na sua cidade natal, durante o mês de novembro.

Apesar da admiração e seguidores que seus talento e obra despertam, o músico revela, não com um certo ar de riso: "Não sei o que eu sou, pois ainda existem músicos radicais que recusam a minha pretensão de ser músico brasileiro".

Não adianta tentar engressar a música de Moura dentro de gêneros. Dono de uma consistente formação erudita - estudou com o maior contrapontista do Brasil e professor da ENM, Paulo Silva, com Esther Scliar, Hans J. Koellreuter (professor e compositor), com os maestros Guerra-Peixe, Cipó e Moacir Silva -, ele é um músico inclassificável. Eclético e inventivo, fica à vontade, bem à vontade, na complexidade de qualquer gênero musical, sempre imprimindo seu próprio estilo, seja na música erudita, na bossa-nova, no jazz, no blues ou na música popular brasileira. Além disso, possui notável sensibilidade: quando faz um show, a depender da reação do público, muda completamente o repertório.

Ele também é capaz de, por exemplo, sair de uma apresentação da Orquestra Sinfônica de Moscou, na qual foi regente, e ir tocar numa gafieira num bairro carioca, com uma panda no Beco das Garrafas. Já acompanhou Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Dolores Duran, Elis Regina, WiIson Simonal, Nat King Cole, Ella Fitzgerald, Marlene Dietrich e Ary Barroso, este último por toda a América Latina e pela Rússia. Tocou com os concertistas Radamés Gnatalli, Lírio Panicalli, Zaccharias, Bernard Bernstein e Stravinsky e formou uma das primeiras jazz band do país, tocando saxofone alto e clarinete. E não se prende a rótulos, tanto que palneja gravar um CD que utilize a cadência da música eletrônica na harmonia instrumental, "Estou sempre em transformação. A música eletrônica é atraente e quero adapta-la à nossa rítmica. O que eu procuro fazer, depois de tocar muito jazz, é me dedicar à música brasileira".

Mesmo sendo reconhecido internacionalmente, o que já lhe garantiu inúmeros convites para tocar e reger no exterior e alguns prêmios, inclusive o Grammy Latino em 2000, os brasileiros ainda não dão a merecida dimensão à obra e à carreira de Moura. Por quê? "Talvez por questões étnicas", avalia. Ainda assim, ao lado de Luiz Eça, Victor Assis Brasil, Sivuca, Villa -Lobos e Hermeto Pascoal, representa a vigorosa e efervescente síntese de uma geração que, depois de ter assumindo a música erudita e o jazz, mergulhou na riqueza rítmica da nossa cultura, compondo um novo caminho de expressão: a música instrumental brasileira.

O mergulho de Moura foi especialmente no chorinho, gênero que se assemelha ao seu eterno estado de espírito - brincante na maneira de tocar, de frasear, aberto aos improvisos. Revisitou a obra do mestre Pixinguinha e de K-Ximbinho - potiguar que foi saxofonista da Orquestra Tabajara e deixou uma obra personalíssinia e ousada, que une o choro, tão brasileiro, ao jazz, tão americano, e abole uam parte do choro, tradicionalmente composto em três, deixando a terceira parte aberta à liberdade, aos novos desenhos e fraseados -, e renovou o estilo: movimento também encampado por Hermeto Pascoal e que ganhou adeptos em todo país, especialmente no Rio de Janeiro, Recife e Brasília.

"Existem pessoas que acham que choro de verdade é só aquele que foi até Jacob do Bandolim, mas eu acho até que eles fa-zem um Jacob na idade do Pixinguinha. O Jacob do Bandolim não tinha preocupação se era jazzista ou não, porque tem muita coisa dele que parece jazz. Eu aplaudo bastante este interesse pelo choro, pelo samba".

E arrisca uma previsão, a de que o choro, um dia, vai se tornar Samba, ou vice-versa: "Eu já guavei alguns choros e os choros que eu fiz são sambas. Tenho um choro que se chama ‘Tarde de Chuva'; a segunda parte do choro é um partido alto. O choro do K-Ximbinho, tem muito de samba. Inclusive outros compositores dos anos 50 fizeram choros em duas partes, que às vezes vira um tema para improvisação. É um samba instrumental - é choro? É uma confusão que, daqui a uns tempos, ou acaba ou fica muito maior."

Em seu mais recente álbum, em parceria com o violonista Yamandú Costa, El Negro Del Blanco, Paulo Moura faz uma viagem por aquela sonoridade, abrindo ainda mais seu universo musical e aproximando músicos como Astor Piazzolla, Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra de Jacob do Bandolim, João Pernambuco e Baden Powell, "Existe uma essência, uma maneira de interpretação, que eu identifico nuns cantor da velha guarda da Mangueira ou do Salgueiro e no violinista ltzhak Perlman, por exemplo. A maneira como um violão da Argentina toca um tango, tem muito a ver com a maneira como nosso violonista de sete cordas toca. Uma das características também importantes é o antiacademicismo. Para a academia, um trompetista americano como Dizzi Gillespie tocar inchando as bochechas, está errado. Este antiacademicismo é um ponto que une nossas músicas".

É um disco que, somado aos quase 20 da carreira de Moura, adensa a alquimia da sua obra. E não importa se é brasileira, americana, latino-americana, A música de Paulo Moura é simplesmente originalíssima e permeável, rica em nuances e informacões de várias culturas. É a música de Paulo Moura. É universal.