Patrimônio: Paulo Moura leva favoritas na clarineta
Cassiano Elek Machado
Folha de São Paulo
 
 

Se a Unesco por alguma ventura resolvesse tombar os sopros de algum brasileiro não haveria muita dúvida de que seriam os do cidadão Paulo Moura Gonçalves, ou Paulo Moura, como ele cravou seu nome na história da MPB. Filho da paulista São José do Rio Preto, mas cidadão carioca desde 1945, o clarinetista, saxofonista, arranjador e compositor já tocou (com loas) com todos os nomes fundamentais da música instrumental brasileira pós-anos 50. Há meio século redondo, rapazola, estava como solista na orquestra de Ary Barroso na Cidade do México. E é só um exemplo. Nesta noite, e na seguinte também, esse patrimônio histórico da música nacional vai estar com a sua clarineta (o sax ele deixou de lado, você logo verá), apresentando seu som brasileiro-universal, que vai do erudito ao choro, passando pelo jazz, em São Paulo. Com dois discos recém-lançados, "K-Ximblues" (tributo ao mestre K-Ximbinho, lançado pelo selo Rob Digital) e "Estação Leopoldina" (Rádio MEC-BR), Moura leva ao Supremo Musical, acompanhado só por acordeão e baixo, temas desses CDs e composições "favoritas", de nomes como Hermeto Paschoal. Em conversa com a Folha, o músico que ronda os 70 anos ("nem sei que idade eu tenho, que diferença faz") se desvia do passado e fala sobre presente e futuro da música brasileira. Leia trechos.

Folha: O maestro Edino Krieger já disse que alguns grandes músicos têm a vocação da especialidade, e citou o pianista Nelson Freire, e outros a vocação da dispersão, e "o melhor nome é Paulo Moura". O sr., que ultrapassa as fronteiras do erudito, jazz e popular, que toca sax tenor, alto e clarineta, compõe e faz arranjos, concorda que tem vocação para dispersão?

Paulo Moura Acho que tenho uma certa vocação é para a interpretação. E acho que a divisão do que é choro, samba ou jazz, que podem ser tocados de muitos modos, só limita a música. É verdade que sempre toquei vários instrumentos, mas por necessidade. Primeiro toquei clarineta. Aí passei a tocar sax. Mas isso não é bom. Cada instrumento tem sua própria expressão. Não dá para fazer uma em um e outra no outro. Por isso tomei a decisão, recente, de ficar só com a clarineta.

Folha: O sr. está completando 50 anos de formado na Escola Nacional de Música, 30 anos de um encontro que o sr. sempre relembra, com o pai do free jazz Ornette Coleman, meio século da primeira viagem ao exterior, com Ary Barroso. O sr. comemora esse tipo de datas?

Paulo Moura Não vejo necessidade de comemorar nada disso. Importante, acho, é comemorar o avanço no cenário musical do país.

Folha: E existem motivos para comemorar a situação da música instrumental no Brasil?

Paulo Moura Acho que aumentou bastante no país o número de pessoas que se declaram abertamente admiradores da música propriamente dita. Não é fácil prestigiar uma música que não tenha letras. É um tipo de sensibilidade com a qual a pessoa nasce. Para eles que toco. E o grupo tem aumentado.

Folha: Mas o mercado nacional para a música instrumental brasileira não é muito inferior ao que poderia ser pela qualidade dos nossos instrumentistas?

Paulo Moura Claro que o espaço é pequeno, embora muitos gostem do bom instrumental. Toquei agora na Baixada Fluminense e fui aclamado. Isso não é registrado. É preciso notar que para as gravadoras é mais difícil controlar o artista músico. Mesmo que seja boicotado pelos meios de comunicação ele continua sobrevivendo. Para o cantor é só fechar os espaços que ele acaba. Repare como é pequena a chance de ouvir instrumentais no rádio. Quando tocam minhas músicas fico feliz, acho que o país está indo para a frente.

Folha: O sr. prefere falar "para a frente" do que "para trás", mas dos "aniversários" já mencionados queria saber como foi a viagem com Ary Barroso, em 1953.

Paulo Moura Eu tinha uns 18 anos e fui chamado para ser solista da orquestra dele. Ficamos no México dois meses. Houve momentos muito bons e outros nem tanto, ele teve problemas com o empresário. Minha experiência profissional era então muito pequena.

Folha: E como foram os encontros do sr. com Pixinguinha?

Paulo Moura Tocamos duas vezes juntos. Depois encontrava com ele às vezes, tinha muito admiração por ele, grande compositor.

Folha: O sr. fala do Pixinguinha, muito famoso como instrumentista, do ponto de vista do compositor. Como o sr. concilia em seu trabalho essas duas facetas. O sr. preferia poder só compor ou só tocar?

Paulo Moura Essa é uma coisa que não consigo resolver na minha cabeça. Minha vocação é tocar, mas tenho composições. Embora o prazer de tocar seja inegável, escrever música talvez dobre o prazer, porque é algo que faço pouco. Para criar uma melodia demoro dias até me sentir compositor. Não dá para fazer os dois juntos.

Folha: Por isso o sr. não tem composto ultimamente?

Paulo Moura Tenho lido muita partitura. Se tiver tempo pretendo até transpor o "Ragtime", do Stravinski, para orquestra de jazz.

Folha: O sr. sempre declara amor por compositores eruditos, principalmente os contemporâneos. São eles que o sr. mais ouve em casa?

Paulo Moura São. Eles estão sempre antecipando as técnicas que vão ser assimiladas daqui a duas décadas. Não sei se vou viver até lá, mas se viver vou estar preparado.